T Ó P I C O : Uma jornada sem precedentes: A histórica missão da FAO para desbravar o café na Etiópia
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Uma jornada sem precedentes: A histórica missão da FAO para desbravar o café na Etiópia
Autor: Leonardo Assad Aoun
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Último comentário neste tópico em: 31/03/2021 11:56:13
Leonardo Assad Aoun comentou em: 30/03/2021 17:47
Uma jornada sem precedentes: A histórica missão da FAO para desbravar o café na Etiópia
Há pouco mais de meio século, uma equipe de pesquisadores em café mergulhou nas florestas da Etiópia, suas descobertas ainda são usadas por institutos de café em todo o mundo.
O professor e geneticista LOURIVAL CARMO MÔNACO, participou da expedição que coletou e identificou muitas variedades de café que apreciamos em nossas xícaras a 60 anos. Conforme dito a JONAS LEME FERRARESSO.

LOURIVAL CARMO MÔNACO
A carreira de agrônomo foi um caminho natural para mim. Nasci na cidade de Piracicaba, terra da mais tradicional universidade agronômica brasileira, a Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (ESALQ). Eu tinha muitos familiares que eram agricultores e meus pais sabiam que a qualificação era fator relevante para o sucesso na vida profissional. Meu interesse pelo café veio da convivência na região cafeeira de Piracicaba. A minha primeira grande oportunidade de trabalhar com café foi dada pelo Dr. Alcides Carvalho, que na época era meu colega de faculdade. Na faculdade, estávamos entre os mais envolvidos no progresso das ciências básicas, com um grupo de outros pesquisadores da ESALQ como os professores Brieger, Gurgel e Paterniani.
Meu trabalho na seção de genética do IAC era abrir um horizonte para o futuro. Tive a sorte de poder trabalhar com uma equipe competente e profissionalmente respeitada que moldou minha trajetória no mundo do conhecimento. É fundamental destacar o espírito científico do Dr. Alcides Carvalho, que envolveu novos companheiros de pesquisa com a sua filosofia, de que “o capital intelectual é o único capital que aumenta quanto mais o compartilhamos”. Sua maior preocupação era a formação de uma equipe que compartilhasse os mesmos princípios e compromisso com a honestidade no trabalho. Essa orientação facilitou minha caminhada pela vida profissional, o que só me trouxe alegria e condições de contribuir, para a modernização do agronegócio brasileiro. Nada mais do que “on the job training.” Ao longo de muitos anos, também pude contribuir em outras áreas relacionadas ao conhecimento do café e sua gestão.
A seção de genética do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) onde trabalhei tinha uma equipe altamente qualificada em termos de genética do café, e todos os membros conheciam a avaliação de materiais vegetais de diferentes origens. Éramos bem estudados na herdabilidade do café devido as nossas pesquisas e, também, nosso setor contava com uma das melhores coleções de espécies de Coffea da época, tudo graças ao trabalho dos professores Carvalho e Krug. O instituto foi a principal fonte de melhoramento e liberação de variedades altamente produtivas como Mundo Novo, Catuaí, Obatã e Acaiá. Hoje, os institutos de todo mundo ainda desenvolvem e selecionam muitas variedades para resistência ou tolerância a pragas e doenças, mas é importante lembrar que já estávamos trabalhando na resistência à ferrugem do café, antes mesmo de ela atingir o Brasil.

Uma aventura
A missão da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) foi minha primeira viagem ao continente africano. No meu mestrado na Universidade da Califórnia, envolvi-me no aprofundamento do conhecimento da origem das espécies e na preservação da biodiversidade. Nada mais lógico do que conhecer a biodiversidade, principalmente do ponto de vista das futuras oportunidades para o melhoramento das plantas. Na época, aos 30 anos, encarei o desafio como uma oportunidade de contribuir com o conhecimento genético mundial e preservar um importante banco de germoplasma que poderia conter, possíveis compostos químicos úteis, arquitetura vegetal, floração, resistência a pragas e doenças. Naquela época, buscar fatores de resistência natural do C. arabica era um projeto pioneiro e inovador. Após a viagem muitos estudos foram desenvolvidos em parceria com o Dr. Branquinho de Oliveira no Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro (CIFC), Portugal.
Na época, participar de uma viagem à África com membros de diversos países, com as mais diversas experiências vividas, para desenvolver atividades relacionadas à missão cafeeira, foi realmente estimulante. Estávamos empenhados em tornar a expedição um verdadeiro sucesso. Dr. Meyer estava profundamente envolvido na programação, como, o que levar, material de trabalho, equipamentos, etc.
Éramos um grupo de cientistas cujo espírito científico nos levou a compartilhar o capital intelectual. Tínhamos um objetivo e uma missão a cumprir, o que facilitou o relacionamento. Nossa dedicação e respeito foram mútuos e tivemos que aproveitar a oportunidade oferecida pelas diferentes regiões da Etiópia. O ambiente era imprevisível. Passamos praticamente três meses no campo, vivendo em condições desafiadoras, trabalhando com os mais diversos dialetos do país, onde até mesmo os intérpretes encontravam dificuldades de comunicação. Às vezes, tínhamos que tentar palavras em italiano, que era conhecido por alguns locais devido à influência italiana em algumas regiões.
Não havia funções diferentes entre os membros, apenas o Dr. Meyer, que era o chefe da expedição. Tínhamos a responsabilidade de coletar material genético, montar acampamento etc. Às vezes comíamos rações militares e outras vezes carne enlatada, além de outros produtos. De vez em quando, um de nós era escolhido para ser o cozinheiro da vez.
Nas áreas urbanas, comíamos “Sega wat”, carne moída com pimenta berbere. Lembro-me do saboroso “Tej”, vinho feito com mel e ervas, e o “Kita firfir” feito com cereal Teff.
Para a missão em si, focamos em áreas onde havia populações de plantas nativas coexistindo com plantações comerciais. Era uma mistura de extrativismo e agricultura familiar. Algumas plantações estavam tecnicamente avançadas, mas distantes das tecnologias existentes no Brasil na mesma década, como cultivares selecionadas e produtivas.
Era um ambiente amigável, mas novo para os pesquisadores. Viajar de carro e nas costas de animais fazia parte da rotina, mas eram facilmente incorporados pelo grupo. Às vezes viajávamos na caçamba de caminhões em bancos de madeira. Os voos ainda estavam longe das modernidades que temos hoje; alguns aeroportos eram primários, mas o encantamento da paisagem tornava tudo interessante. O espírito de equipe motivou todos a explorar. Dr. Meyer e nossa equipe sempre foram totalmente dedicados ao projeto, quase altruístas.
Como esperado, nem tudo saiu conforme planejado. Acidentes com pneus furados ou reabastecimento com combustível errado às vezes aconteciam. Naquela época se usava a palavra “petrol”, se não me engano, para descrever o diesel e não a gasolina. Um vez abastecemos errado, e toda a equipe passou o dia limpando o tanque do veículo.
Frequentemente, passávamos a noite em tendas. As águas dos rios adjacentes foram usadas muitas vezes por animais e por nós. Dormíamos no campo, tendo como pano de fundo lindos cafezais nativos africanos. As paisagens bucólicas nos animavam e estimulavam a busca por novos materiais vegetais.

Olhando para trás
Nunca mais voltei à Etiópia, pois continuamos o nosso trabalho com o material de café coletado no Brasil em parceria com o Centro de Oeiras. Viajei novamente à África mais tarde, várias vezes, para avaliar a ocorrência de ferrugem do café, principalmente no Quênia, Tanzânia, África do Sul e Moçambique.
Anos depois, percebi a importância desta expedição, o quanto contribuímos para o avanço no conhecimento do café, sabendo que coletamos materiais genéticos singulares. Era certo que nossa missão foi um sucesso, e que preservamos um valioso material genético a ser explorado por pesquisadores dos principais centros de pesquisa de café do mundo. Nessa expedição identificou material genético com baixíssimo teor de cafeína, o que abriu novas linhas de pesquisa. Essas descobertas impulsionaram muitos pesquisadores pela busca em diferenciação e qualidade, pensando fora da caixa das comodities. Cabe às novas gerações de pesquisadores definir suas estratégias de melhoramento e buscar fatores genéticos ainda não esplorados de interesse nesta coleção.
O café é uma planta perene, por isso requer um certo tempo para coletar material genético, cultivar e estudar. O material coletado na expedição foi utilizado para estudos relacionados às mais diversas características morfológicas e fisiológicas, como, resistência a pragas e doenças, estudos químicos, organolépticos, entre outros. Um bom exemplo é o fato de que quase 50 anos depois, plantas com menor teor de cafeína ou resistência a nematoides ainda são identificados na coleção por alguns centros de pesquisa brasileiros.
O “pool genético” é a argila com a qual o melhorista trabalha para desenvolver demandas específicas do setor produtivo ou consumidor. A pesquisa genética foi aprimorada ao longo os anos com novas técnicas computacionais, mapeamento de variações; entretanto, esses estudos exigem continuidade e persistência.
É frequente a ameaça a biodiversidade nos centros de origem devido a expansão da agricultura. Já se sabe que as mudanças climáticas estão colocando em risco as populações de café na Etiópia. Essa ameaça justifica a criação de diretrizes voltadas à preservação do material genético na origem e nos países produtores. Um grande desafio para governos e organizações internacionais é manter e preservar a genética para as gerações futuras.
Agradeço a oportunidade e o desafio de relembrar minha experiência profissional vivida a quase 60 anos. Espero ter me lembrado dos pontos interessantes e não ter omitido nada.

Compreendendo as origens da missão da FAO
Hoje são conhecidas 124 espécies de Coffea, em 1947, no trabalho “Les Caféiers du Globe III Systématique des Caféiers et Faux Caféiers” do botânico francês Auguste Jean Baptiste Chevalier a lista continha apenas 66 variações. Na época, as exportações mundiais de café correspondiam a commodity mais valiosa, à frente do algodão e trigo. Na década de 1960, o Coffea arabica respondia por 75% do café consumido globalmente.
Observando o aumento do consumo global de café, e percebendo as vagas informações e lacunas na ciência do café, o professor brasileiro de genética do café, Carlos Arnaldo Krug, trouxe uma sugestão para a primeira Conferência da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) sobre Produção e Proteção do Café, realizada em 1960. Ele recomendou a criação de uma força tarefa internacional para explorar as espécies nativas de café, pois isso estabeleceria uma coleção mundial, traria avanços ao setor e benefícios a todos os países produtores de café. A moção foi aprovada e o professor Krug começou a planejar a expedição.
Visitando 40 diferentes locais em 92 dias, a expedição foi uma aventura: os pesquisadores [1] viajaram de avião, carro, mula e a pé por uma Etiópia que ainda não tinha toda a infraestrutura que possui hoje. Juntamente a representantes do governo etíope, o grupo carregava seu próprio equipamento e ficava isolado do contato telefônico na maioria dos lugares.
O grupo coletou 621 variações de sementes de Coffea arabica, sendo que todo o material e conhecimento foi compartilhado com institutos de pesquisa em todo o mundo, incluindo o Central Coffee Research Institute (Índia), Coffee Research Station (Tanzânia), Agricultural Technical School (Etiópia), Inter-American Institute of Agronomic Science (Costa Rica), Estação de Pesquisa de Tingo María (Peru) e Instituto Agronômico de Campinas (Brasil). Os herbários, uma coleção de espécimes de plantas preservadas e notas da viagem, foram distribuídos para o Royal Botanic Garden (Reino Unido) e o US National Arboretum, mas posteriormente outros tiveram acesso ao material. A significativa quantidade de informações adquiridas nesta expedição foi divulgada gratuitamente para acesso e beneficiando de muitos outros pesquisadores em todo o globo.
O professor LOURIVAL CARMO MÔNACO foi pesquisador do IAC de 1957 a 1991, onde trabalhou em soluções para a chegada da ferrugem do café ao Brasil em 1970 e publicou dezenas de artigos científicos. JONAS LEME FERRARESSO é engenheiro agrônomo e profissional de cafés especiais que trabalha em toda a cadeia de valor do café na Região do Circuíto das Águas Paulista.
O relatório completo, detalhes e trabalhos das expedições está disponível no relatório “FAO Coffee Mission to Ethiopia 1964–1965”, que está disponível em diversas bibliotecas do Brasil e do mundo.
Referências
[1] O grupo foi formado por L.M. Fernie, melhoristas de plantas; D.J. Greathead, entomologista; F.G. Meyer, botânico; R.L. Narasimhaswamy, melhorista de plantas; e L.C. Mônaco, geneticista de plantas. A expedição também foi apoiada pelo governo etíope, que enviou cinco membros: A.A. Makonnen, conselho do café etíope; D. Yirgou, Fitopatologista; A.O. Abaye, Ministério da Agricultura; e F.E. Bolton e A.Y. Yomano-Barhan da Escola Técnica de Agricultura Jimma.

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